Ao limparem o quarto onde vivia Dona Amélia da Silva, num asilo paulista, encontraram um pequeno diário, escrito com letras trêmulas e borradas, ao que parece, por lágrimas.
Lá encontramos a seguinte narrativa:
"Não enxergo direito, mas acho que amanheceu. Pela janela vejo as árvores; está frio... Oh, sim, ainda bem que a enfermeira veio servir-me o remédio; eu ando esquecendo tudo com facilidade!"
"Só não me esqueço da minha casa; quando é que me levarão de volta, meu Deus?
Preciso regar minhas avencas, minha samambaia que ganhei de Dona Maria, meu jardim! Não posso deixar a roupa lá fora tanto tempo, vai sujar! Com tanta poluição não há roupa que aguente! E a carne que ficou em cima da pia? Meu Deus, tenho que guardá-la. Ei, enfermeira, o meu filho já chegou? Não? Ele não virá? Por que? Ah, meu Deus, por favor, pede pra ele passar aqui e me levar, quero ir para casa...."
Preciso regar minhas avencas, minha samambaia que ganhei de Dona Maria, meu jardim! Não posso deixar a roupa lá fora tanto tempo, vai sujar! Com tanta poluição não há roupa que aguente! E a carne que ficou em cima da pia? Meu Deus, tenho que guardá-la. Ei, enfermeira, o meu filho já chegou? Não? Ele não virá? Por que? Ah, meu Deus, por favor, pede pra ele passar aqui e me levar, quero ir para casa...."
"Elas acham que sou louca porque todos os dias eu peço a mesma coisa. Mas elas não me atendem, tenho que pedir de novo até me atenderem, não? Será que estou errada?"
"Não. Não enlouqueci. Eu envelheci. E não tenho mais casa. Não tenho casa, nem móveis, nem guarda-roupas, nem mesa, nem cozinha, nem nada. Acho que nem filho eu tenho...Virei uma indigente..."
"A que ponto cheguei!"
"Como? Televisão? Não, não quero ver televisão. Vai ligar mesmo assim? Quer dizer que não tenho querer? Hã? Ah, a companheira de quarto quer ver? Está certo, então ligue. Ela também é outra coitada. Deixa ela ver TV. Aqui não se tem privacidade nenhuma, querer nenhum mesmo... Eu cuidava tão bem da minha TV! Onde estão os meus discos, os meus quadros, os meus álbuns de fotografia? Cadê as minhas cartas que o Zezinho escreveu quando éramos namorados?"
"Eu não sei. Acho que jogaram tudo fora. Era tudo lixo, como dizem. Velhos não servem pra nada, só pra dar gastos e dar trabalho! Não sei porque a gente fica velho..."
"Como? Remédio de novo? Mas você já me deu, filha! Não, não quero! Ah... tenho que tomar, né? É injeção? Eu preciso? Está certo. Está aqui meu braço. Aplique. Ai! Obrigado, filha. (já não sei quantas picadas levei desde que me internaram aqui. Meu filho falou que é só por um tempo, porque eu precisava de cuidados; mas pelo visto esse tempo é pra sempre, porque isso foi antes do Natal do ano passado, e já enfeitaram o quarto novamente..."
"Estou no asilo. Chamam de Casa de Repouso, mas é só pra amenizar a nossa dor. Ah, daqui só pro cemitério. O Seu João, aquele do quarto ao lado, foi no mês passado. E a Dona Nena? Coitada, morreu pensando que estava pulando corda, virou criança de novo! Eu às vezes esqueço um pouco das coisas de hoje, fico lembrando de outros tempos melhores. Afinal, se estou presa aqui por que deixar também a mente presa? Queria tanto ver meu filho..."
"Filha, por favor, eu já pedi pra outra enfermeira, peçam pro meu filho vir aqui me pegar! Como? Ele viajou? Mas ele disse que viria me pegar! Eu preciso falar com ele! Ah, assim que voltar me avisam? Está certo."
"Ai,... ui,..., pronto. Sentei. Meu passeio diário: da cama para a poltrona. E aqui passo as horas. Sinto as mãos frias, por que será? Fico o dia inteiro com frio! Se ao menos as minhas netinhas viessem aqui um pouco... Desculpem, não segurei, são gases, eu não consigo mais dominá-los, sinto vergonha, mas o que posso fazer, meu Deus! Perdão de novo, perdoem também as lágrimas..."
"Estou presa aqui. Onde está minha família? Ainda bem que tenho esse caderno para escrever. Mas está difícil enxergar, tudo é tão cheio de fumaça, dizem que é catarata. Eu sei lá, inventam cada coisa pra justificar a idade! No meu tempo não tinha nada disso."
"Eu só não queria morrer presa aqui. Por que tive que ser aprisionada? Ah, meu velho, que saudade de você! Você é que foi feliz, viu? Faz tanto tempo que se foi! Fiquei do seu lado até o fim, lembra? Nossa, às vezes me parece que até escuto ele dizer: 'sim, me lembro...'. Cuidei da minha mãe, do meu pai, da minha sogra e sogro também, porque é o dever de toda boa esposa, filha e mãe. Cadê meu filho que se esqueceu de sua mãe? Sou um estorvo tão grande assim? Desculpem, eu choro mesmo, sinto sua falta..."
"Meu Deus, tenho que ir ao banheiro. Com licença, ai, será que vou ter que me humilhar de novo? Ai, filha, perdão, se eu pudesse evitar isso, você me dá uma ajudinha no banheiro? Que vergonha, meu Deus... Ai, sentei no vaso. Você vai ficar me vendo? Estou tão envergonhada! Não sei se rio, se choro, perdão, minha filha. Pronto. Você me ajuda a vestir? Eu não me alcanço mais. Que vergonha..."
"Deus, onde está meu filho? Filha, por favor, alguém já chamou meu filho?"
"MINHA SENHORA, POR FAVOR, FIQUE QUIETA, A SENHORA PASSA O DIA TODO PERTURBANDO AS ENFERMEIRAS, PEDINDO PRA CHAMAR SEU FILHO; ELE VIRÁ APÓS O ANO NOVO; ELE JÁ DEIXOU AS MENSALIDADES PAGAS E O SEU PRESENTE COMPRADO, VAMOS ENTREGÁ-LO NO NATAL; MAS, POR FAVOR, NÃO PERTURBE TANTO, A SENHORA ESTÁ NOS DANDO NOS NERVOS!"
"Nossa, que vergonha... Vou ficar quietinha aqui na cama. Sinto tanto frio... Me sinto só..."
"Que mão é essa? Quem é você? Voluntária Visitante? Veio me fazer companhia? Nossa, filha, veio gastar tempo com uma velha? Ihihihi, eu fico até sem jeito. Que coisa boa ter alguém aqui pra conversar! Como? Como era a vida na minha infância? Ah, era tão divertida! Deixe-me contar....."
"Já vai embora? Mas você ficou tão pouco! Ah, tem outros velhinhos pra visitar. Certo. Então fique um pouco com essa coitada aí do lado, ela está sempre chorando. (até parece que eu não...)"
"Nossa, já anoiteceu! Será que não vão me levar embora? Só Deus não me abandona! 'Senhor, por favor, eu não aguento mais; leva-me embora, viver assim não é viver. Quero ir para os teus braços, pois sinto-me só. Me ajude! Em nome de Jesus. Amém'".
Dona Amélia ganhou o presente de Natal, mas não recebeu a visita de seu filho. Antes do Ano Novo ela faleceu.
O rapaz foi ao enterro. Ergueu um túmulo bonito, com um pedaço do dinheiro que conseguiu na venda da casa. Ele deixara sua mãe no asilo numa tarde, para buscá-la à noite, e em três anos nunca mais voltou...
Dona Amélia esperou seu filho até morrer.
Não nos esqueçamos dos nossos idosos; eles são o que seremos amanhã. Não os ignoremos, não os joguemos em depósitos humanos, não os consideremos estorvos. Deus não terá por inocente um filho que não cuidar dos seus. Dinheiro não justificará ausência, nem tampouco carência de cuidados médicos; a presença do filho é terapia humana que abre as janelas da alma. Presença nem sempre física, mas sempre emocional e espiritual de quem dá valor e faz saber. Filho, cuide de seus pais idosos. "Honra a teu pai e a tua mãe, como o Senhor teu Deus te ordenou, para que se prolonguem os teus dias, e para que te vá bem na terra que te dá o Senhor teu Deus." (Dt 5:16)
Wagner Antonio de Araújo
Igreja Batista Boas Novas - Osasco SP
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